É uma quimera. Um castelo de areia. Nem arte, artesanato ou revolução. Quimera. Cozinha sentimental tecnológica. Consiste separar a asa da coxinha da asa e daquela pontinha que não raramente ainda vem com uns bicos de penas. Essa pontinha para nada serve, já a coxinha tem lá suas utilidades. Assim se não encontro as tulipinhas a sós, penso sempre como empregá-las( as demais peças). Neste caso as usarei para fazer o molho, a coxinha e a pontinha da asa.
Separo as partes nas juntas anatômicas. Uma faca afiada, bem empunhada. Uma tábua para pousar a asa bem acomodada, sobre um papel de cozinha umedecido, este evita o deslizamento da peça. Faço deslizar o corte da faca na junta, justo onde se encontram as cartilagens.
A tulipa separada das demais peças reservo. À coxinha e a pontinha da asa junto cebola grosseiramente picada e cenoura da mesma forma, numa panela com um fio de azeite douro tudo muito bem até que se forme uma crosta marrom escura no fundo. Deglaço. Deglaçar nada mais é que desfazer a película que se forma no fundo da panela, justo o contrário de glaçar e nada tem a ver com a calda açucarada, mas têm a mesma origem, película de gelo, neve etc. Para deglaçar pode-se usar um líquido como: água, vinhos, conhaques, porto etc. Como o que quero é todo o gosto e cheiro da galinha, da granja, dos pintainhos e, reduzirei o volume com shoyo somado, qualquer outro sabor só aumentaria o barroquismo da coisa. Deglaço com água. Um litro de água. Cozinho até o líquido reduzir pela metade. Com uma concha e tudo em repouso retiro o que posso e consigo de gordura. Coo o líquido por uma peneira de malha muito fina, “um chapéu chinês”, volto ao fogo e acrescento shoyo a gosto. Há que se usar um shoyo com menos sal possível, pois há que se reduzir este volume até que se tenha uma textura de caramelo. Não fará mal nenhum quem acrescentar uma colher de açúcar mascavo, e melhor ainda fará aquele que dispor de um vermute branco, martini seco, para somar umas duas colheres das de sopa de faqueiro de casamento. Grandes. Não uso amido de milho para engrossar, reservo-o para fazer mingau para mim e a gata.
O molho está pronto. Em uma assadeira boto as tulipas bem (muito) temperadas e arranjadinhas com : sal grosso, folhas de louro, estragão, tomilho, pimenta do reino, se possível tudo triturado. Cubro tudo com óleo de girassol ou canola. Se tivesse um forno confiável, levaria o conjunto para ser assado por 50 min. A 80ºC. Não tenho. Coloco na temperatura mínima e quando começa a ferver o óleo, desligo o fogo. Deixo esfriar. Volto à carga e desligo novamente.
Agora espero esfriar e uma vez a temperatura sendo inferior a 50ºC, retiro as tulipas e nesta temperatura e com esmero, atenção, calma, capricho, amor à arte vou empurrando os ossinhos, retirando com cuidado as cartilagens que impedem o movimento de rotação deles, descolo a cartilagem do outro lado, pronto saem os ossos, então ponho-as em um recipiente para levar à geladeira, até que esfriem e ganhem consistência.
Eu guardo bem tapado esse óleo para outras façanhas e outros usos.
Uma vez frias trabalho a apresentação. Cortando aparas, aparando, as deixo retangulares. Tenho o molho quente e as tulipas passadas pelo crivo da estética. Então acabo assim: numa frigideira ou coisa que se pareça e que tenha umas estrias bem quente, coloco as tulipas e as marco de ambos os lados. Feito isso emprato-as. Empratar é colocar no prato, com algum gosto, alguma delicadeza, algum desenho. E o molho uso para cobrir uma parte da tulipa, fazer gotas, zigue-zagues no prato. Enfeito o prato com folhinhas de tomilho. As faço acompanhadas de sementes de quiabo passadas por azeite e sal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário